Comprar e foder. E não necessariamente nessa ordem. Para além de questões filosóficas sobre o sentido da vida, há o entrelaçamento de vidas sem qualquer sentido, senão o exercício diário das várias formas de conjugar e viver esses dois verbos: comprar (vender) e foder. Este é o contexto da peça “Shopping & Fucking”, em cartaz no Teatro Moliére, na Aliança Francesa, até o dia 17 de junho. A peça tem direção de Fernando Guerreiro e texto do inglês Mark Ravenhill.
No texto, em boa medida fragmentado e perturbador, jovens vivem uma relação de dependência, física e emocional, com as drogas, com o dinheiro e entre si. Lulu (Jussilene Santana) ama Robbie (Rodrigo Frota) que ama Mark (Edvard Neto) que ama Gary (Emiliano D'Ávila) que não ama ninguém, senão a imagem impossível de um homem que o salvará e o fará esquecer os abusos sexuais sofridos pelo próprio padrasto. Entre eles há a figura do traficante Brian (Celso Jr.), capaz de chorar ao assistir os solos de violoncelo tocados pelo filho e comover-se com a saga do pequeno Rei Leão, ao tempo em que ameaça sem remorso a vida de quem se põe em seu caminho.
Encenada pela primeira vez em 1996, em Londres, a peça mistura humor negro, drama e brutalidade e já contou com duas montagens no eixo Rio-São Paulo. Na adaptação de Guerreiro, ao contrário do texto original, os nomes dos personagens não são citados, por eles ou por terceiros. Intencionalmente ou não, esse detalhe dá o tom de como as relações entre eles são construídas, do amor e da individualidade completamente submersos sob a água suja de uma realidade na qual o sexo e o dinheiro são as únicas motivações para a vida.
O amor aqui pouco importa e assume diversas formas, como o de Mark por seus dois amigos, que é o mesmo amor que se tem por algo que se acabou de comprar e cujo uso lhe renderá algum prazer momentâneo, ou então na atitude de Robbie, em que por amor à humanidade distribui toda a quantidade de drogas fornecida por Brian, pondo ele e Lulu em situação de risco com o curto prazo de uma semana para repor o dinheiro. O enredo não é assim tão linear quanto parece quando contado. Estes e outros fatos são intercalados com cenas e diálogos “chocantes” aos mais sensíveis ou conservadores, nas quais o sexo está sempre presente. “Shopping & Fucking” faz a “aceleração no vácuo” de Baudrillard parecer não mais que uma ciranda de crianças.
A concepção cênica da montagem de Guerreiro é absolutamente brilhante. O cenário é composto unicamente por um imenso e belo Cadillac vermelho, sobre um mecanismo que permite girá-lo em todas as direções a depender do contexto da cena e da movimentação dos personagens. O abre e fecha das portas, a utilização também do capô e do porta-malas do veiculo criam uma mobilidade dinâmica e bastante importante quando conjugada ao texto. A escolha de um carro como peça principal do cenário também é bastante emblemática. Tal qual na vida real, o carro do cenário de “Shopping & Fucking” é usado para tudo: a casa, o suporte, a cama. É usado como tudo: menos como carro. Assim como na vida real, o cultuado e desejado objeto de consumo assume outras funções que não a locomoção: são a extensão de nossa casa, de nossa proteção e até de afirmação da personalidade de seus donos. Os atores, por sua vez, da caracterização à interpretação estão muito bem, demonstrando o ímpeto e a dedicação necessários para se assumir os risco de uma produção tão polêmica e chocante.
“Shopping & Fucking” desagrada aos mais sensíveis e por isso mesmo prova que é bom no que se propõe, pois choca e expõe de forma visceral alguns aspectos da dita sociedade de consumo: o valor do dinheiro, o pouco valor da vida e o sexo enquanto moeda de troca corriqueira, alimentando a eterna ânsia de consumo praticada incessantemente por pessoas já consumidas. E toda essa velocidade absurda da perda de valores representada em um carro que não sai do lugar, apenas gira em torno de si mesmo, e de personagens que, como já diria Lobão em plena perdição, preferem viver “dez anos a mil, que mil anos a dez”.
bethponte@nacoco.com.br
“Shopping and Fucking ” Com Jussilene Santana, Rodrigo Frota, Edvard Neto, Celso Jr e Emiliano D'Ávila. Direção: Fernando Guerreiro. Texto: Mark Ravenhill
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